domingo, 28 de maio de 2023

Harmonia - Um jeito múltiplo de ser único

Por Jânsen Leiros Jr.

            Qualquer pessoa que já tenha assistido a uma orquestra tocar, muito provavelmente observou o impressionante sincronismo entre os diversos instrumentos que tocam simultaneamente, e que compõem em conjunto a harmonia que replica a pretensão sonora original do compositor; a sensação que queria provocar em sua audiência. É claro que nem todos gostam de música clássica, mas quer gostem, quer não, certamente entendem que o som resultante de diferentes acordes, tempos e movimentos, produz uma só melodia, cuja cadência varia pela condução do maestro.

Ou seja, estar diante de uma orquestra é estar diante de múltiplos instrumentos que, apesar das diferentes notas e sons emitidos, serão capazes de nos fazer ouvir uma única mensagem musical através da harmonia, que de todos faz um; propriedade inerente a um corpo[1].

Lembro-me de quando estive frente a frente com uma orquestra pela primeira vez; Projeto Aquarius[2], Quinta da Boa Vista, sentado no gramado diante do Museu Nacional. Naquele dia, a Orquestra Sinfônica Brasileira, com a regência do magnífico Isaac Karabtchevsky[3], executou "As Quatro Estações" de Vivaldi. Eu sentia o rufar dos tambores dentro do peito, e o som dos violinos quase me elevou do chão. E mais. O maestro parecia ter uma linha que ligava suas mãos a cada músico, de modo que seus movimentos controlavam cada um dos integrantes da orquestra. Um espetáculo. Eram os anos 1970, e aquela experiência transformou definitivamente meu gosto musical.

Algum tempo passou. Não muito. A janela da sala do apartamento onde morávamos no Cachambi, Zona Norte do Rio, dava para os fundos da Igreja Batista, de onde eu podia ouvir os cânticos da congregação. Eram hinos do Cantor Cristão, mas eu só fui saber disso mais tarde. De qualquer forma, aquele canto bem entoado e a empolgação com que soltavam a voz me replicaram as sensações da Quinta da Boa Vista. O interessante é que aquele som sempre esteve ali. Todo domingo. Pela manhã e à noite. Mas eu não o notei antes. Não sem a experiência da harmonia.

Minha avó sempre dizia que a curiosidade matou o gato. No meu caso, me fez viver bem mais e melhor. Aos treze anos, movido por um interesse inexplicável de ver aquela gente cantando, entrei na igreja e subi as escadas do recinto onde todos estavam. Fui impedido de entrar e pediram-me para aguardar na escada, pois o coral iria começar a cantar. E cantaram. "Maravilhosa Graça". Diversas pessoas, quatro vozes, uma só música, em uma harmonia que eu jamais havia ouvido em toda minha vida. Em todos meus longos treze anos de vida. Quando terminaram e fui autorizado a entrar, corri escada abaixo e fui para casa, com as sensações totalmente embaralhadas. Meses depois, eu já frequentava a Primeira Igreja Batista em Cachambi, e depois de batizado, ingressei no coral, tornando-me, talvez, o tenor mais jovem daquele conjunto. Minha alegria e satisfação eram flagrantes.

Na verdade, compreendi com a maturidade que o poder convergente da harmonia sempre me encantou. A capacidade de unificar em um único e precioso resultado o esforço e a dedicação de muitos sempre me fascinou, a ponto de definir minhas predileções nos mais diversos campos da vida. Esportes coletivos, a casa cheia de gente, trabalhos em equipe, tudo isso sempre me foi preferível pelo desafio e prazer da convergência.

Harmonizar pessoas é desafiador

 "10 Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para encher todas as coisas. 11 E ele mesmo concedeu uns para apóstolos, outros para profetas, outros para evangelistas e outros para pastores e mestres, 12 com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço, para a edificação do corpo de Cristo, 13 até que todos cheguemos à unidade da fé e do pleno conhecimento do Filho de Deus, à perfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, 14 para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro e levados ao redor por todo vento de doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro. 15 Mas, seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, 16 de quem todo o corpo, bem ajustado e consolidado pelo auxílio de toda junta, segundo a justa cooperação de cada parte, efetua o seu próprio aumento para a edificação de si mesmo em amor.

Efésios 4:11-16

,Se harmonizar sons, instrumentos e acordes já é uma tarefa difícil que demanda muito exercício e dedicação, requerer que indivíduos complexos e únicos se harmonizem em suas predileções, ideais e pretensões, é infinitamente mais difícil e desafiador. Há muita coisa em jogo quando falamos de gente. É muito comum que premências definam prioridades, que vaidades determinem escolhas, e sonhos e expectativas apontem para posicionamentos pelos quais se pode lutar até às últimas consequências. Em tais circunstâncias, é claro, nada mais comum do que ver a harmonia escorrer pelo ralo da inflexibilidade e do egoísmo. Não é exatamente isso que nos lança em um mundo de guerras, polarizações, intolerâncias e preconceitos?

Pode soar estranho, mas a pluralidade de denominações no meio cristão, em especial entre os evangélicos, não tem outra raiz senão a inabilidade humana de convergir naquilo que é comum e harmonizar-se com o divergente, quer aceitando-o, quer seguindo na experimentação da vida, até que haja compreensão comum ou amoroso convívio na direção do bem comum. Impossível? De modo algum. Fariseus se juntaram a herodianos para armarem ciladas para Jesus. Partidos políticos formam frentes e coalizões sempre que interesses comuns os incitam a uma aliança. Ora, se interesses nem sempre probos são capazes de unir divergentes e até inimigos, por que o propósito do Reino de Deus não o é? Respondam a si mesmos.

De certa forma, esse parece ser o intuito do apóstolo Paulo no texto de Efésios que lemos acima. Várias e diferentes partes, ajustadas e adequadamente unidas por um mesmo e único propósito. Afinal, tudo em nós enquanto corpo, como tudo o que fazemos, precisa convergir em Cristo e para Ele, que é tudo em todos. Ou seja, por mais que no exercício da vida cada um seja dotado para algo a que o outro não foi, todos trabalham com fins à harmonia, que produz uma mensagem única, coesa, inequívoca e absolutamente inspiradora, porque por Deus inspirada.

Ora, se a harmonia é o fim das diferentes partes de um conjunto, não seria diferente quanto aos quatro evangelhos que, juntos, formatam a mensagem única do Evangelho de Jesus Cristo. De certo que não. E muito embora algumas críticas superficiais e indolentes tentem encontrar divergências que desmereçam a mensagem, lançando dúvidas sobre os conteúdos aparentemente inconsistentes e divergentes, o que traremos para discussão e aprofundamento neste trabalho é a impressionante harmonia entre as mensagens transmitidas pelos quatro evangelistas, embora seus respectivos textos tenham sido escritos separadamente e em épocas não coincidentes.

Exatamente como se trabalha em ensaios, sejam em uma orquestra, sejam de um coral, será necessário paciência e atenção para passarmos as partituras de cada voz ou instrumento. Ouviremos com atenção cada um dos evangelistas, em sua narrativa particular. Avaliaremos condições e propósito, e entenderemos a cadência com que cada um deles pretendeu comunicar a mensagem aos ouvintes das boas novas. E esse já é, de cara, um dado relevante; ouvintes, muitos mais do que leitores. Sim, porque poucos eram os que, à época, sabiam ler. Mais um ingrediente para a busca da harmonia perfeita. Falaremos melhor sobre isso mais adiante.

Portanto, para evitarmos desafinar desde os primeiros compassos de nossa ópera, que tal buscarmos uma ambientação silente e de boa acústica, onde não haja qualquer preconceito gritando em nossas consciências, ou eco algum reverberando ideias que compramos sem análise, e que por vezes repetimos por mero costume? Vamos escutar o que cada um dos evangelistas tem a nos dizer, progredindo pelas marcações e etapas que a harmonia da mensagem única propõe. E então ouviremos uma só melodia composta pelo Espírito de Deus, tocada por estes seus quatro distintos instrumentos; Mateus, Marcos, Lucas e João.


[1] No contexto metafórico de unidade, o termo "corpo" refere-se à ideia de que todos os membros de um grupo ou comunidade estão interligados de maneira harmoniosa e colaborativa, assim como os diferentes membros de um corpo físico trabalham juntos para realizar diversas funções.

Essa metáfora ressalta a importância da cooperação, da complementaridade e da interdependência entre os membros de um grupo. Cada pessoa tem um papel único a desempenhar, mas todos trabalham juntos em direção a um objetivo comum. A unidade é alcançada quando todos os membros reconhecem e valorizam suas diferenças individuais, mas também reconhecem sua interconexão e a importância de trabalhar em conjunto para o benefício de todos.

[2] O "Projeto Aquarius" foi uma série de concertos de música clássica realizados ao ar livre no Brasil durante os anos 1970. Esses concertos, geralmente organizados em parques públicos e espaços abertos, tinham como objetivo levar a música clássica para um público mais amplo e diversificado, como forma de democratizar o acesso à cultura.

[3] Isaac Karabtchevsky é um maestro brasileiro nascido em São Paulo em 1934. Ele é reconhecido internacionalmente por sua carreira dedicada à regência de orquestras sinfônicas em todo o mundo. Karabtchevsky estudou no Conservatório de Moscou e no Conservatório de Paris, onde aprimorou suas habilidades como maestro.

No Brasil, ele é especialmente conhecido por sua longa colaboração com a Orquestra Sinfônica Brasileira, da qual foi diretor artístico e regente titular em diferentes períodos ao longo de sua carreira. Ele também trabalhou com outras orquestras importantes no Brasil e no exterior, como a Orquestra Petrobras Sinfônica, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) e a Orquestra Sinfônica do Paraná.

Karabtchevsky é admirado por sua habilidade técnica, sua interpretação emocionalmente envolvente e seu compromisso com a divulgação da música clássica no Brasil e no mundo. Ele recebeu inúmeros prêmios e homenagens ao longo de sua carreira, consolidando seu lugar como uma figura proeminente no cenário musical brasileiro e internacional.