quarta-feira, 24 de abril de 2024

Capítulo 1 - Cenários e contextos

 Por Jânsen Leiros Jr.

 

Para compreendermos plenamente a riqueza e a profundidade dos Evangelhos, é fundamental nos determos um pouco no contexto histórico, político e cultural em que foram concebidos. Nos meandros da Palestina do primeiro século, um cenário intrincado se desdobra, carregado de significados religiosos e sociais que ecoam nas páginas dos Evangelhos. Nessa jornada de compreensão, somos convidados a explorar as diversas influências judaicas e helenísticas que moldaram as narrativas desses textos, bem como a pressão exercida pela presença do dominador romano nesse mesmo contexto.

Ao olharmos para a Palestina da época de Jesus, encontramos uma terra mergulhada em efervescência religiosa e tensões políticas. A presença do judaísmo, tanto em suas formas ortodoxas quanto em seus diversos movimentos e seitas, delineava o horizonte espiritual do povo. Por outro lado, a influência helenística, proveniente da cultura grega que permeava o mundo mediterrâneo, também deixava sua marca, especialmente nas cidades cosmopolitas como Jerusalém.

Referências históricas, como os escritos de Flávio Josefo e as descobertas arqueológicas, nos fornecem um panorama vibrante desse contexto. A vida cotidiana na Palestina do primeiro século, seus costumes, suas práticas religiosas e suas relações sociais, ganham vida através de obras como "Jesus e Seu Tempo: A Palestina na Época de Jesus", de Richard A. Horsley, e "A Vida Diária nos Tempos de Jesus", de Henri Daniel-Rops, entre outros[1].

                          I.   Cenário geopolítico

A Palestina nos tempos de Jesus era uma região marcada por uma complexa teia de influências políticas. Sob o domínio do Império Romano[2], a região estava dividida em várias províncias, cada uma com suas próprias dinâmicas e desafios.

Província da Judeia

Esta província era o centro religioso e político da região, com Jerusalém como sua capital. A Judeia era de grande importância para os judeus, pois abrigava o Templo de Jerusalém, o principal local de culto e peregrinação. Politicamente, a Judeia era frequentemente palco de tumultos e revoltas devido à forte resistência judaica ao domínio romano.

Província da Galileia

Localizada ao norte da Judeia, a Galileia era uma região agrícola próspera, com uma população diversificada de judeus e gentios. Embora não fosse tão central quanto a Judeia, a Galileia tinha sua própria importância política e econômica. Foi lá que Jesus passou a maior parte de sua vida e ministério, e muitos de seus discípulos eram originários dessa região.

Província da Samaria

Situada entre a Judeia e a Galileia, a Samaria era habitada principalmente por samaritanos, um grupo étnico e religioso distinto dos judeus. Devido a diferenças religiosas e étnicas, havia tensões entre judeus e samaritanos. Politicamente, a Samaria era estrategicamente importante como uma área de passagem entre o sul e o norte da Palestina.

Província da Pereia

Localizada a leste do Jordão, essa região fazia fronteira entre a Palestina e o território nabateu. Embora menos mencionada nos relatos do Novo Testamento, a Pereia tinha sua própria importância política e econômica, com cidades como Jericó e Pela.

Além dessas províncias principais, havia outras regiões menores e cidades importantes na Palestina, cada uma contribuindo de alguma forma para o cenário político da época. O controle romano sobre essas províncias e regiões era mantido por meio de governadores e autoridades locais, o que muitas vezes levava a conflitos e instabilidade política.

Domínio Romano

O domínio romano sobre a Palestina foi estabelecido após a conquista de Pompeu[3] em 63 a.C., tornando-a uma província imperial sob o controle direto de Roma. Os romanos nomearam procuradores ou prefeitos para administrar a região, incluindo a Judeia, onde Jerusalém estava localizada. Esses governadores romanos tinham autoridade sobre assuntos administrativos e militares, embora estivessem subordinados ao governador da Síria em questões de maior importância.

Herodes, a Dinastia e o Império

Durante grande parte do período do Novo Testamento, a Palestina era governada pela dinastia herodiana, liderada por Herodes, o Grande, e seus descendentes. Herodes foi nomeado rei da Judeia pelos romanos em 37 a.C.[4] e governou com mão de ferro até sua morte em 4 a.C. Apesar de suas habilidades políticas e das impressionantes obras que construiu, como o Templo de Jerusalém, ele também era conhecido por sua crueldade e paranoia.

Após a morte de Herodes, seus filhos dividiram o reino entre si[5], criando uma série de tetrarquias que governavam diferentes partes da Palestina. Isso resultou em uma complexa teia de lealdades e rivalidades que contribuíram para a instabilidade política na região.

Durante todo o período herodiano, tal governo coexistia com o poder do Império Romano, embora o controle final permanecesse nas mãos dos romanos. Essa convivência aparentemente harmônica seguia uma dinâmica delicada, na qual Herodes e seus descendentes mantinham uma relação de conveniente subserviência a Roma, buscando manter a ordem e a legalidade na Judeia.

Herodes, embora fosse um monarca local, devia sua posição e autoridade ao Império Romano, que mantinha o poder de destituí-lo do cargo se desafiasse sua autoridade. Seu poder, portanto, era limitado e sujeito à supervisão e controle de Roma, especialmente em questões militares.

Além disso, Herodes e seus descendentes tinham o dever de manter relações diplomáticas com Roma, e somente através dela. Tinha que enviar tributos e relatórios regulares, garantir a estabilidade e a ordem em sua província e reprimir rebeliões para assegurar a lealdade de seus súditos. Tudo isso ajudava na manutenção de sua posição de rei da Judeia.

Para manter seu poder e legitimidade entre seu próprio povo e mantê-los sob controle, Herodes investiu em construções impressionantes, como o Templo de Jerusalém. Sua política de tolerância religiosa também ajudou a garantir a estabilidade interna, permitindo-lhe o apoio de várias comunidades religiosas em sua província, incluindo judeus, samaritanos e gregos, e evitando conflitos que pudessem chamar a atenção de Roma.

                        II.   Cenário sociocultural e religioso

Não bastasse o domínio romano para complicar a vida na região, a Palestina estava dividida por questões étnicas, religiosas e sociais, com tensões frequentes entre judeus e samaritanos[6], bem como entre judeus e outros grupos étnicos como gregos e os próprios dominadores romanos. Nesse contexto, a hierarquia social era rígida, com uma elite governante composta por nobres e sacerdotes, enquanto a maioria da população vivia em condições de pobreza e opressão. Este período foi marcado por uma rica diversidade cultural, que incluía elementos judaicos, helenísticos e romanos, todos eles influenciando profundamente a vida e as crenças das pessoas na região.

O contexto sociocultural da Palestina daqueles tempos, portanto, era impressionantemente complexo. Diante da dominação romana, os judeus enfrentavam uma variedade de perspectivas sobre como lidar com essa realidade. Enquanto alguns, como os fariseus[7], buscavam preservar a identidade religiosa e cultural judaica, enfatizando a observância da Lei e a separação dos gentios, outros, como os saduceus[8], colaboravam com o governo romano em troca de poder e privilégios. Além disso, havia grupos dissidentes, como os zelotes[9], que pregavam a resistência armada contra os romanos em busca da libertação política da Palestina, criando assim um clima de tensão e instabilidade na região. Entre os grupos de maior relevância havia ainda os chamados essênios[10], que...

Religiosamente, o judaísmo exercia uma influência significativa sobre a vida cotidiana das pessoas. Baseado na Torá[11], ou Lei de Moisés, os judeus seguiam uma série de práticas religiosas, como a observância do sábado e as festas religiosas, com o Templo de Jerusalém sendo o epicentro da vida religiosa. A diversidade de grupos religiosos dentro do próprio judaísmo, como os que vimos acima, promovia razoável tensão no convívio de diferentes interpretações da Lei e suas práticas e aplicações.

As expectativas messiânicas entre os judeus eram crescentes, com muitos aguardando um Messias[12] que libertaria Israel do domínio romano e estabeleceria o reino de Deus na terra. Essas expectativas escatológicas influenciaram a recepção de Jesus como Messias e suas interpretações de sua missão e ensinamentos. Todo esse contexto religioso, cultural e político é essencial para compreendermos plenamente o ambiente em que Jesus viveu e ministrou, pois fornece valiosa contribuição sobre as dinâmicas sociais e religiosas da Palestina nos tempos do Novo Testamento.

Avaliando os complexos cenários que apresentamos, podemos compreender como eram inevitáveis as tensões daquela época. Tal realidade moldou profundamente as interações e reações à mensagem e pregação do Senhor. Em um contexto onde a insatisfação com a dominação romana se misturava com as diversas facções religiosas judaicas e as influências culturais helenísticas, os ânimos estavam vulneráveis a qualquer movimento que desafiasse o status quo estabelecido pelo poder local e romano. Assim, a figura de Jesus surge não apenas como a de um pregador carismático, mas também como alguém que incitou debates, provocou conflitos e promoveu reações que ameaçaram a Pax Romana[13] e a conveniente posição social das elites judaicas da época. Isso explica em parte a imensa mobilização que se empreendeu contra ele. Não obstante, esse mesmo cenário contribuiu para que sua pregação se perpetuasse pela história até os nossos dias.



[1] Além das obras já mencionadas, existem várias outras que podem enriquecer a pesquisa sobre o contexto histórico, cultural e religioso da Palestina nos tempos do Novo Testamento.

1.       "O Judaísmo nos Tempos de Jesus: História Política e Social dos Judeus", de Hyam Maccoby - Oferece uma visão abrangente do judaísmo na época de Jesus, incluindo aspectos políticos, sociais e religiosos.

2.       "Vida e Época de Jesus, o Messias", de Alfred Edersheim - Um estudo detalhado sobre a vida e o tempo de Jesus, explorando o contexto histórico, cultural e religioso em que ele viveu.

3.       "O Mundo do Novo Testamento: Compreendendo o Contexto do Texto Bíblico", de Joel B. Green e Lee Martin McDonald - Apresenta uma visão geral do mundo do Novo Testamento, incluindo questões históricas, culturais, sociais e religiosas.

4.       "O Judaísmo da Época de Jesus: Uma Introdução Histórica", de Emil Schürer - Uma obra clássica que examina o judaísmo durante o período do Segundo Templo, fornecendo insights valiosos sobre o contexto religioso e cultural da Palestina.

5.       "O Contexto Social do Novo Testamento: Uma Introdução aos Textos e Culturas Judaica e Greco-Romana", de Richard E. DeMaris - Oferece uma análise abrangente do contexto social do Novo Testamento, incluindo informações sobre a Palestina e suas influências culturais.

6.       "Judeus e Cristãos na Palestina do Século I: Um Estudo de Interação Social", de Anthony J. Saldarini - Explora as relações entre judeus e cristãos na Palestina do primeiro século, destacando os contextos sociais e culturais em que essas interações ocorreram.

7.       "Jesus e a História", de Martin Hengel - Oferece uma perspectiva histórica sobre a vida de Jesus e seu contexto, examinando as fontes históricas e os eventos políticos e sociais da época.

 

[2] O Império Romano foi uma das maiores e mais influentes civilizações da história, centrada na cidade de Roma, na península Itálica. Surgiu após a expansão do Reino de Roma, transformando-se de uma república em um império no século I a.C., sob o governo de Júlio César e, posteriormente, Augusto.

O império durou aproximadamente 500 anos, desde o estabelecimento do Principado por Augusto em 27 a.C. até a queda de Roma em 476 d.C., marcando o fim do período conhecido como Antiguidade Clássica.

Durante seu auge, o Império Romano se estendeu por vastas áreas da Europa, Norte da África e Ásia Ocidental, abrangendo cerca de 50 a 70 milhões de pessoas. Incluía territórios que hoje correspondem a vários países, como Itália, Espanha, França, Grécia, Egito, Turquia, entre outros.

O legado deixado pelo Império Romano é vasto e influenciou profundamente a civilização ocidental. Contribuições notáveis incluem a lei romana, que serviu de base para os sistemas jurídicos modernos; a arquitetura, com obras como aquedutos, estradas, pontes e o Coliseu; o latim, que deu origem às línguas românicas, como o português, espanhol, francês, italiano e romeno; e avanços significativos em engenharia, filosofia, literatura e arte. Além disso, o legado cultural e político de Roma continuou a influenciar governos, instituições e sociedades ao longo da história.

 

[3] Pompeu foi um general e político romano que desempenhou um papel significativo na história do Império Romano. Em 63 a.C., ele conquistou a Palestina, tornando-a uma província romana após uma campanha militar bem-sucedida. A conquista de Pompeu marcou o início do domínio romano sobre a região. Além da Palestina, Pompeu anexou várias outras regiões ao Império Romano durante suas campanhas militares. Alguns dos territórios mais significativos conquistados por Pompeu incluem a Síria, a Judeia, a Transjordânia, a Fenícia e a região da Cilícia. Essas conquistas ampliaram consideravelmente a extensão do Império Romano no Oriente Médio e no Mediterrâneo Oriental.

[4] A motivação para nomear Herodes como rei foi principalmente política e estratégica. Após a morte de Antígono, o último rei hasmoneu da Judeia, Herodes aproveitou a oportunidade para conquistar o poder na região. Ele se aliou ao general romano Marco Antônio, que estava envolvido em uma disputa pelo controle do Império Romano após a morte de Júlio César, e foi posteriormente confirmado como rei. Os romanos viam em Herodes um aliado confiável que poderia manter a ordem na região e garantir a lealdade dos judeus. Além disso, Herodes demonstrou sua capacidade de governar eficazmente durante seu reinado, especialmente em termos de administração e construção de projetos monumentais, como o Templo de Jerusalém.

Herodes não tinha qualquer ascendência genealógica puramente judaica, que justificasse sua pretensão ao reinado da Judeia. Ele era descendente de uma família idumeia, que havia se convertido ao judaísmo algumas gerações antes. No entanto, Herodes buscou legitimar seu governo através de alianças políticas com os romanos e da promoção de sua própria imagem como protetor e defensor dos interesses judaicos. Embora sua legitimidade fosse contestada por alguns grupos judaicos, Herodes conseguiu manter-se no poder com o apoio romano e suas próprias habilidades políticas.

[5] Após a morte de Herodes, o Grande, em 4 a.C., seu reino da Judeia foi dividido em quatro tetrarquias, cada uma governada por um de seus filhos. As tetrarquias eram:

1.       Galileia, governada por Herodes Antipas.

2.       Itureia e Traconites, governada por Filipe, o filho de Herodes, o Grande, com Cleópatra de Jerusalém.

3.       Judeia e Samaria, governada por Arquelau, outro filho de Herodes, o Grande.

[6] A tensão étnica entre judeus e samaritanos remonta a disputas históricas e religiosas. Os samaritanos eram considerados uma população mista, descendentes de judeus remanescentes e povos estrangeiros trazidos para a região após o exílio babilônico. Eles mantinham suas próprias tradições religiosas e um templo em Monte Gerizim, desafiando a centralidade do Templo de Jerusalém para os judeus. Além disso, havia diferenças culturais e políticas, exacerbadas pela rejeição dos judeus em aceitar a identidade samaritana como parte integrante do povo eleito. Essas tensões resultaram em hostilidades mútuas e segregação social entre as duas comunidades.

[7] Os fariseus eram um grupo judaico devoto que enfatizava a observância estrita da Lei e das tradições religiosas, buscando a pureza ritual e a separação dos gentios. Acreditavam na ressurreição dos mortos e na existência de anjos e espíritos. Esperavam um Messias que restaurasse a pureza religiosa e a observância da Lei.

[8] Os saduceus eram uma facção aristocrática e sacerdotal do judaísmo que rejeitava a crença na ressurreição, nos anjos e nos espíritos. Tinham uma relação pragmática com o governo romano e concentravam-se no Templo e no culto sacrificial. Não tinham expectativas messiânicas claras, focando mais nos assuntos políticos e religiosos do presente.

[9] Os zelotes eram um grupo radical que advogava a resistência armada contra o domínio romano, buscando a libertação política de Israel. Acreditavam em um Messias guerreiro que lideraria a revolta contra os ocupantes estrangeiros e estabeleceria o reino de Deus na terra.

[10] Os essênios eram uma comunidade judaica ascética e separatista, que vivia uma vida comunitária rigorosa e se afastava das instituições religiosas do templo em Jerusalém. Tinham uma visão apocalíptica do mundo, aguardando um Messias e um juízo final que purificaria a terra do mal e inauguraria uma era de justiça divina.

[11] A Torá é a lei escrita do judaísmo, composta pelos cinco primeiros livros da Bíblia hebraica: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Nos tempos de Jesus, a Torá desempenhava um papel central na vida religiosa e cultural do povo judeu, servindo como um guia moral e legal para sua conduta individual e comunitária. Era estudada, interpretada e aplicada pelos líderes religiosos e pelos judeus devotos em suas práticas diárias, incluindo observâncias rituais, festivais religiosos e sacrifícios no Templo de Jerusalém. Atualmente, a Torá continua sendo uma autoridade religiosa fundamental para os judeus, que a consideram como a palavra revelada de Deus e a base de sua identidade religiosa e étnica. É lida regularmente nas sinagogas, estudada em profundidade nas escolas judaicas e guiadora da vida moral e espiritual dos praticantes do judaísmo.

[12] A Torá, em um sentido mais amplo, refere-se aos cinco primeiros livros da Bíblia hebraica: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. No entanto, em um sentido mais amplo, a Torá pode incluir também os escritos proféticos, conhecidos como Nevi'im, e os escritos sapienciais e poéticos, conhecidos como Ketuvim. Juntos, esses três componentes formam o Tanakh, a Bíblia hebraica.

[13] A Pax Romana, ou "Paz Romana", foi um período de relativa paz e estabilidade que se estendeu aproximadamente do final do século I a.C. até o século II d.C. Durante esse tempo, o Império Romano conseguiu controlar vastas áreas de território, promovendo um ambiente de segurança que facilitou o comércio, a comunicação e o desenvolvimento cultural. Essa paz foi mantida através do controle militar romano e do estabelecimento de leis e infraestrutura que promoviam a ordem e a coesão dentro do império.