quinta-feira, 23 de maio de 2024

Capítulo 2 - Análise comparativa dos Evangelhos Sinóticos

Por Jânsen Leiros Jr.

Dentro do estudo da Sinfonia Evangélica, já compreendidos os contextos históricos e culturais em que os Evangelhos foram escritos, torna-se imperioso passarmos por uma análise comparativa dos Evangelhos Sinóticos. Esta abordagem, essencial para uma compreensão mais profunda, nos permitirá explorar com mais profundidade as similaridades e divergências entre Mateus, Marcos e Lucas, revelando uma harmonia subjacente que enriquece nossa compreensão da mensagem de Jesus Cristo. Através dessa análise, poderemos discernir como cada evangelista, com sua perspectiva única, contribuiu para uma narrativa coesa e transformadora, essencial para uma teologia cristã consistente e uma fé vivida. Além disso, a comparação dos textos revela não apenas as particularidades de cada relato, mas também as nuances e perspectivas teológicas que emergem, evidenciando a complexidade e a beleza da narrativa sinfônica dos evangelhos.

Mas afinal o que são os Evangelhos Sinóticos?

Antes de iniciarmos com mais detalhes nossa tarefa de comparação dos Sinóticos, faz-se necessário entender, mesmo que rapidamente, o que são os Evangelhos Sinóticos, e porque é que são chamados assim.

Os Sinóticos são os três primeiros livros do Novo Testamento: Mateus, Marcos e Lucas. Eles são denominados "sinóticos" devido à sua grande similaridade em conteúdo, estrutura e linguagem, permitindo que sejam visualizados em paralelo e comparados lado a lado. A palavra "sinótico" deriva do grego "synoptikos," que significa "ver junto" ou "ver do mesmo ponto de vista."

Os Evangelhos Sinóticos compartilham muitos dos mesmos relatos, ditos e eventos da vida de Jesus Cristo, frequentemente utilizando palavras e frases idênticas ou muito semelhantes. Essa semelhança sugere que os autores dos evangelhos de Mateus e Lucas possivelmente utilizaram o evangelho de Marcos como uma fonte comum, além de outras fontes que poderiam ter circulado na comunidade cristã primitiva, como a hipotética "Fonte Q" (do alemão "Quelle," que significa "fonte").

Esses evangelhos começam com a pregação de João Batista e a introdução do ministério de Jesus, passando por eventos significativos como a tentação no deserto, a seleção dos discípulos, os sermões, as parábolas, os milagres, a Paixão e a Ressurreição. Embora cada evangelista apresente uma perspectiva única, suas narrativas frequentemente seguem uma sequência cronológica e temática similar, o que facilita a comparação e análise conjunta, sendo significativo também no esclarecimento das intenções e contextos específicos dos autores, proporcionando uma visão mais completa da mensagem de cada Evangelho.

1. O Conceito de Harmonia nos Evangelhos Sinóticos

A percepção da harmonia, porém, não é um exercício tão simples assim. Se na análise comparativa dos sinóticos nos percebemos como os autores adaptaram as tradições de Jesus para seus contextos e públicos específicos, preservando a unidade da mensagem cristã enquanto respondiam a necessidades particulares, determinadas divergências entre eles, e até mesmo em relação ao Evangelho de João, são frequentemente apontadas como contradições, por aqueles que são ávidos por encontrar algo que possam utilizar como pretexto para esvaziar a autoridade do texto bíblico. Essas diferenças, contudo, não passam de olhares distintos sobre os mesmos fatos, refletindo a perspectiva única de cada autor, assim como testemunhas de um mesmo acontecimento podem oferecer relatos variados com base em suas posições e experiências individuais.

Esses exemplos não são contradições propriamente ditas, mas sim reflexões das diferentes comunidades e necessidades teológicas para as quais cada Evangelho foi escrito. Os Evangelhos foram compostos em contextos variados, onde cada autor adaptou as tradições de Jesus para responder às questões e desafios específicos de suas audiências. Em Marcos, a ênfase na urgência e no imediatismo da mensagem de Jesus é clara, enquanto Mateus, escrevendo para uma audiência judaica, sublinha o cumprimento das profecias do Antigo Testamento. Lucas, por outro lado, destaca a universalidade da mensagem cristã e a inclusão dos marginalizados, refletindo seu público gentílico.

Na prática forense, múltiplos testemunhos de um mesmo evento frequentemente variam em detalhes sem que isso comprometa a veracidade do acontecimento. Investigadores consideram esses relatos complementares, não contraditórios, pois cada testemunha contribui com uma peça do quebra-cabeça, ajudando a formar uma imagem mais completa e rica da verdade. De modo semelhante, as diferentes narrativas dos Evangelhos enriquecem nossa compreensão de Jesus, oferecendo múltiplas facetas de sua vida e ensinamentos, o que, no final das contas, é o que nos interessa e importa.

Portanto, ao analisar comparativamente os Evangelhos, devemos valorizar essas diferenças como complementares, contribuindo para a riqueza e profundidade da mensagem cristã. Elas não apenas confirmam a autenticidade dos testemunhos sobre Jesus, mas também demonstram a diversidade e a unidade na fé cristã, refletindo a multifacetada realidade da vida e do ministério de Jesus Cristo.

2. Exemplos Práticos de Análise Comparativa

Tomemos, por exemplo, o relato da cura do cego em Jericó. Em Mateus 20:29-34, Jesus cura dois cegos ao sair de Jericó. Marcos 10:46-52, porém, menciona apenas um cego chamado Bartimeu, enquanto Lucas 18:35-43 relata a cura de um cego ao se aproximar de Jericó. Essas variações podem ser compreendidas considerando que Mateus, com seu estilo inclusivo, frequentemente menciona dois personagens quando Marcos e Lucas focam em um, geralmente o mais proeminente ou notório[1]. Além disso, a diferença na localização temporal pode ser resultado de distintas tradições orais ou do desejo dos autores de enfatizar diferentes aspectos da narrativa de Jesus.

Consideremos, ainda, o relato da Transfiguração de Jesus (Mateus 17:1-8, Marcos 9:2-8, Lucas 9:28-36). Em todos os três Evangelhos, Jesus leva Pedro, Tiago e João a uma montanha alta, onde Ele é transfigurado diante deles, e Moisés e Elias aparecem ao Seu lado. As palavras de Deus, "Este é o meu Filho amado; a ele ouvi", são quase idênticas nos três relatos, mas existem diferenças sutis:

·         Mateus destaca o rosto de Jesus brilhando como o sol e Suas roupas tornando-se brancas como a luz, enfatizando a glória divina de Jesus.

·      Marcos coloca um foco maior na reação de Pedro e a confusão dos discípulos, sublinhando a incompreensão e o medo deles.

·      Lucas menciona que os discípulos estavam "pesados de sono" e acrescenta que Moisés e Elias falavam com Jesus sobre sua "partida", que Ele estava para cumprir em Jerusalém, conectando o evento à missão de Jesus.

Comparando os Evangelhos Sinóticos com João, encontramos ainda mais exemplos de perspectivas distintas. João, com seu estilo altamente teológico e simbólico, frequentemente oferece uma narrativa mais reflexiva e interpretativa dos eventos da vida de Jesus. Por exemplo, enquanto os Sinóticos narram a purificação do templo como um evento tardio no ministério de Jesus (Mateus 21:12-13; Marcos 11:15-17; Lucas 19:45-46), João o posiciona no início (João 2:13-22), sugerindo uma intenção teológica de introduzir o ministério de Jesus com um ato profético significativo.

Essas variações não contradizem, mas complementam-se, proporcionando uma visão tridimensional do evento. A análise comparativa aqui ilumina a multifacetada identidade de Jesus – Sua divindade, a confusão humana em reconhecê-la e a missão redentora que Ele estava para cumprir.

3. Importância Teológica da Análise Comparativa

Teologicamente, a análise comparativa ajuda a destacar as diferentes ênfases teológicas dos Evangelhos. Mateus frequentemente cita profecias do Antigo Testamento, apresentando Jesus como o cumprimento das promessas messiânicas. Marcos, com seu estilo rápido e direto, enfatiza a ação e o sofrimento de Jesus, sublinhando a urgência do discipulado. Lucas, com seu foco na universalidade da mensagem de Jesus, sublinha a compaixão de Cristo e a inclusão dos marginalizados.

Por exemplo, na narrativa da Última Ceia (Mateus 26:26-29, Marcos 14:22-25, Lucas 22:14-20), as palavras e ações de Jesus são consistentes, mas Lucas inclui a instrução adicional de Jesus aos discípulos sobre o papel deles após Sua partida e a promessa do Espírito Santo (Lucas 22:19-20, 24-30). Isso reflete a preocupação de Lucas em apresentar Jesus não apenas como o Messias de Israel, mas como o Salvador de toda a humanidade, e os discípulos como seus continuadores na missão.

4. Contribuição para a Harmonia dos Evangelhos

A análise comparativa não apenas esclarece as diferenças e semelhanças entre os Evangelhos Sinóticos, mas também contribui para a compreensão da harmonia dos Evangelhos como um todo. Cada autor, inspirado pelo Espírito Santo, selecionou, adaptou e organizou o material de acordo com suas perspectivas teológicas e necessidades de suas comunidades. Essa diversidade dentro da unidade é uma das características mais impressionantes do Novo Testamento.

Ao comparar os Evangelhos Sinóticos, ganhamos uma apreciação mais profunda da riqueza da tradição evangélica. Entendemos como a mensagem de Jesus foi transmitida, adaptada e preservada de um modo que atendem às diferentes necessidades das comunidades cristãs primitivas. Esse processo de contextualização não diminui a autoridade ou a veracidade dos Evangelhos; ao contrário, ele mostra a vitalidade da mensagem de Jesus e sua capacidade de falar a todas as gerações e culturas.

A análise comparativa dos Sinóticos, portanto, é de suma importância para a teologia cristã. Ela nos permite ver as múltiplas facetas de Jesus Cristo, Sua missão e Seu impacto, através das lentes de diferentes narradores inspirados. Compreender essas nuances não só enriquece nossa fé, mas também nos ajuda a ver a harmonia divina que permeia as Escrituras. Ao explorar essas comparações, encontramos uma profundidade de significado que nos aproxima mais do entendimento da natureza múltipla do Evangelho e da unidade na diversidade que ele proclama; uma realidade sobre a qual devemos refletir.



[1] Um exemplo simples e prático desse costume, é a citação dos discípulos que caminhavam para Emaús, após a morte e sepultamento de Jesus. Eram dois os discípulos. Porém apenas Cleópas tem o nome apresentado, muito provavelmente por ser ele o mais proeminente dos dois, ou ainda daquele de quem qualquer testemunho pudesse vir a ser tomado, caso precisassem, os leitores, de confirmação.